Teatro é uma manifestação das possibilidades criativas e expressivas que todos temos enquanto seres humanos. Se buscarmos a origem do nome que damos a essa atividade, chegamos a um lugar e a uma época em que ela alcançou, ao mesmo tempo, um altíssimo nível de elaboração poética e simbólica e um grande potencial comunicativo: a Atenas do séc. V a.C.
A palavra “teatro” vem da palavra grega “théatron” que significa “lugar de onde se vê” ou “lugar de onde se contempla”, formada pela junção das palavras gregas theaomai (contemplar, observar) com trón (sufixo de lugar). Como já afirmei em outro texto (A origem do teatro), embora seu significado original remetesse ao lugar de onde se vê, com o passar dos tempos se tornou costume usar a palavra para nos referirmos também àquilo mesmo que se vê, à atividade expressiva.
As uvas, o ditirambo e o teatro
O teatro grego tem suas origens nos cultos religiosos a Dioniso, deus grego do vinho, do êxtase e da fertilidade. Assim como muitas religiões têm suas cerimônias e seus calendários sagrados, os gregos tinham um calendário de cultos e celebrações dedicado aos seus deuses (acreditavam em muitos deuses — politeísmo). Dentre essas festividades, havia as Dionisíacas, grandes festas regadas a muito vinho, em que se cantava e dançava músicas sagradas (chamadas de ditirambos) em homenagem à divindade. Sendo Dioniso um deus da loucura, durante as festas dionisíacas o êxtase (do grego, ekstasis — sair de si) era celebrado e havia um relaxamento das estratificações sociais, com a participação, por exemplo, de mulheres e escravos (que não eram considerados cidadãos) nas festividades.
Havia outros cultos dedicados a Dioniso como as Leneias e as Antestérias. Em todos esses cultos, grandes procissões cantavam suas narrativas míticas sobre as divindades, seus mitos. Mas como esses cultos se transformaram no teatro como nós o conhecemos? Em que momento os ditirambos (hinos sagrados) abriram espaço para o diálogo?
O primeiro ator
A história nos conta que Téspis, um cantador e dançarino grego, foi chamado por Psístrato, então governante de Atenas, por volta de 530 a.C., para embelezar as festas dionisíacas que aconteciam entre março e abril de cada ano, trazendo uma novidade aos cortejos: até então, um grande coro liderado por um corifeu (o líder do coro) cantava os ditirambos para o deus, mas ninguém representava o deus em 1ª pessoa. Téspis, então, em certo ano, durante o cortejo, pôs uma máscara e uma veste diferente e disse “Eu sou Dioniso”, se transformando em outro e materializando a divindade. O deus agora estava encarnado. Agora era possível que o coro falasse a Dioniso e ele respondesse. Dessa forma, se fez possível o diálogo. Téspis ficou conhecido por isso como sendo o primeiro ator (em grego hypócrites). Era uma grande inovação. Durante as Dionisíacas era possível, a partir de então, acompanhar os diálogos entre o deus e o coro. Com o tempo, esses diálogos se estenderam a muitas outras narrativas que compunham a religião e a mitologia gregas e os atores passaram a representar, sob suas máscaras, muitas outras divindades e heróis.
É importante perceber que a religião era o discurso que integrava e organizava simbolicamente a sociedade grega e, portanto, era uma questão política. Isso explica o convite de Psístrato a Téspis e seu desejo de organizar e embelezar as festas religiosas, pois também tinham caráter cívico.
As Grandes Dionisíacas
Outros governantes, na virada do séc. VI para o séc. V a.C., também trabalharam no sentido de fazer de Atenas uma referência cultural para o mundo que a cercava, instituindo festas, datas comemorativas e incentivando a produção da cultura ateniense e, portanto, sua identidade cultural e coesão social e política. Muitos comerciantes e estrangeiros passavam por Atenas durante essa época e podiam assistir a esse grande evento cultural, cívico e religioso que ficou conhecido como as Grandes Dionisíacas.
Durante os 6 dias de festejos dedicados ao deus, toda a cidade podia acompanhar o evento. A festa iniciava com uma grande procissão que levava Dioniso (uma imagem sua ou um ator que o representasse) em um carro pelas ruas da cidade, cercado por sátiros (homens fantasiados de bode) e por grandes coros que cantavam e dançavam até chegarem ao teatro, espaço em que aconteceriam os concursos teatrais. Chegando ao teatro, a população se acomodava e iniciava-se a cerimônia de abertura dos concursos com a apresentação dos poetas que estavam concorrendo e as peças que seriam apresentadas. Os concursos teatrais (chamados agon) duravam 3 dias e eram organizados pelo arconte (mais alto cargo público de Atenas) que selecionava os três poetas que concorreriam e seus respectivos coregos, cidadãos ricos que recebiam a tarefa honrada de patrocinar as apresentações de cada poeta, incluindo alimentação e estadia do elenco e produção dos espetáculos. As Grandes Dionisíacas eram um evento público para toda a sociedade ateniense. Por isso, não só os considerados cidadãos, mas também estrangeiros e escravos assistiam aos concursos gratuitamente.
As Grandes Dionisíacas foram responsáveis por instituir principalmente duas formas (gêneros) teatrais: a tragédia e o drama satírico. Para esse concurso cada poeta deveria apresentar uma tetralogia, ou seja, um conjunto de 4 peças composto por 3 tragédias e 1 drama satírico. Já as comédias eram apresentadas principalmente durante os concursos teatrais das Leneias, outra festa, também dedicada a Dioniso, que acontecia em janeiro.
A Tragédia Grega
A tragédia, enquanto gênero teatral, se caracterizou essencialmente por apresentar um conflito sem solução, fosse entre os desejos de um mortal e a vontade dos deuses, fosse entre valores antagônicos (tradição x Estado), fosse a luta de um mortal contra o seu próprio destino. A palavra tragédia deriva de tragos (bode) + oidos (canto), ou seja, o canto do bode. O bode era um animal associado a Dioniso e por isso era sacrificado em seus cultos. Também havia cortejos de sátiros (homens fantasiados de bode) nos cultos dionisíacos. Do encontro dos cantos a Dioniso com as narrativas da mitologia grega, seus deuses, heróis e titãs, nasceu a tragédia grega.
O trágico não significa apenas um fato triste. Um fato se torna trágico na medida em que, sendo triste, não poderia ser de outra maneira. Um bom exemplo é a tragédia de Édipo, escrita por Sófocles. Édipo era um príncipe, quando recebeu uma profecia: estava condenado a assassinar o próprio pai e casar com a própria mãe. Na tentativa de fugir de seu destino, Édipo vai embora de seu reino, mata um homem pela estrada e, chegando a outro reino, decifra um enigma e liberta a cidade de uma doença que assolava a população. Ganha, dessa forma, a coroa deixada por um rei recém falecido e casa-se com a rainha. Édipo descobre, mais tarde, que seus pais eram adotivos e que seus pais biológicos eram, na verdade, o rei (que ele havia assassinado na estrada) e a rainha com quem ele se casara — o que confirmava a profecia da qual tentou fugir. Transtornado com seu destino, Édipo fura os olhos e vai vagar pelo mundo, pagando por sua tragédia. Esse é um bom exemplo de um herói que sofre em confronto com um mundo que não pode mudar, é um herói trágico.
Segundo Aristóteles, filósofo grego, ao apresentar situações trágicas e emoções muito intensas de terror e compaixão, a tragédia deveria purgar esses sentimentos, fazendo com que as pessoas, ao presenciarem essas situações no teatro, purificassem suas almas, efeito chamado de catarse (kátharsis — purificação). Ainda segundo o filósofo, o mais importante em uma tragédia era o desenvolvimento de sua trama, que deveria apresentar claramente a sequência “começo, meio e fim”. Para isso, as tragédias deveriam seguir três unidades básicas: a) unidade de tempo: a história deveria acontecer num curto intervalo de tempo (até 24 horas), sem saltos temporais (apresentar momentos diferentes do tempo), o que capturaria mais a atenção do público; b) unidade de lugar: o ideal era que todas as ações da trama acontecessem em um mesmo lugar, para evitar confusões para o público; c) unidade de ação: a trama deveria seguir uma ação principal, uma história principal, sem se perder em tramas secundárias. Além disso, cada situação deveria acontecer em conformidade com a ação anterior, todas as cenas apresentadas de forma encadeada.
Ésquilo, Sófocles e Eurípedes
Os principais tragediógrafos gregos que chegaram até nós são Ésquilo (Prometeu Acorrentado, a trilogia Oresteia, os Persas), Sófocles (Édipo Rei, Antígona, Electra) e Eurípedes (Medeia, Ifigênia em Áulis, Bacantes). Esses três grandes poetas dramáticos venceram muitos concursos teatrais nas Dionisíacas ao longo de várias décadas e se eternizaram na história do teatro. Cada um deles, inclusive pelo seu contexto histórico, deram à tragédia um sentido um pouco diferente. Ésquilo (525–455 a.C.), o mais antigo, apresentava em suas tragédias um mundo harmonicamente organizado (onde os mortais apenas deveriam cumprir seu destino) que, perturbado por um desequilíbrio (hybris) do herói (o protagonista), precisava ser restaurado pela sua punição (por isso seu fim trágico). A visão de um mundo organizado fazia sentido dentro do contexto em que Ésquilo vivia, sob a influência hegemônica do pensamento religioso que explicava todos os acontecimentos do mundo pelos seus mitos. Com a gradual transformação da sociedade ateniense, a abertura de mercados, a intensificação das trocas comerciais, o aumento de circulação de produtos e informações e o desenvolvimento da democracia, a cultura abria outros espaços de conhecimento fora da hegemonia mítico-religiosa, como a filosofia. O teatro acompanhava essa transformação. Sófocles (497–406 a.C.), outro grande tragediógrafo, já trazia mais voz aos mortais em suas tragédias — embora prevalecessem os valores da religião, de forma que a trajetória conflituosa do herói com o mundo deveria servir como aprendizado para os mortais, isto é, tinha um caráter pedagógico. Em Eurípedes (480–406 a.C.), o mais tardio dos três, o mundo já não se apresentava como um todo organizado, o sofrimento do herói não tinha necessariamente um valor pedagógico, mas era apenas um desequilíbrio de forças e um antagonismo entre desejos e valores, sem que uns fossem essencialmente mais legítimos que os outros. Em Eurípedes, os mortais ganham mais voz e seus desejos ganham mais importância para o desenrolar da história.
Deuses e heróis representavam os valores e os conflitos da sociedade ateniense nas tragédias gregas. Três atores (limite de atores aceitos em cena) se revezavam nos personagens da trama e o coro ocupava a orquestra (orkhestra — “espaço de dança” semicircular entre o palco e o público), dançando e cantando entre as cenas. Os atores usavam máscaras e vestes representativas de seus personagens e falavam e se moviam com grande expressividade para que um público de 10.000 pessoas pudesse acompanhar a representação.
Drama satírico e Comédia
Após a representação da trilogia de tragédias de cada poeta, vinha o desfecho da tetralogia com um drama satírico (escrita pelo mesmo poeta), peça em que os sátiros (homens-bode), com suas figuras grotescas e seu caráter hedonista e covarde, zombavam dos mesmos grandes temas míticos que acabavam de ser representados, trazendo a cena e a narrativa de volta ao cotidiano mais banal e cômico, relaxando as tensões e as fortes emoções provocadas pela trilogia trágica que a antecedia. O único texto satírico integral que chegou até nós foi O Ciclope de Eurípedes.
Assim como as tragédias, o drama satírico e a comédia têm suas origens nos cultos a Dioniso. O “satírico” do drama vem dos sátiros que dançavam e festejavam o deus. Também a comédia teve origem na festa de komos (farra, festa), daí seu nome: komos + oidos (canto da farra), espécie de carnaval burlesco que acontecia em janeiro, durante as Leneias.
Enquanto as tragédias tratavam de temas elevados e nobres, as comédias mostravam o lado precário, errático e burlesco da vida humana. Originada nos cantos fálicos dos komos, a comédia grega foi marcada por duas grandes épocas: a Comédia Antiga ou Clássica (480–400 a.C.) e a Comédia Nova (330–250 a.C.). As obras que marcaram o período conhecido como Comédia Antiga ironizavam personalidades públicas supostamente nobres e seus motivos e valores supostamente elevados, apontando contradições entre seus discursos e práticas. Os atores eram acompanhados por grandes coros que dançavam e brincavam com a plateia. Esse estilo de comédia era muito propício ao contexto democrático de Atenas. Durante os festivais de comédia, o teatro se transformava em um fórum público de crítica explícita a governantes, poderosos e à sociedade como um todo.
O maior representante da Comédia Antiga que chegou até nós foi Aristófanes. Muito premiado e querido nos festivais, Aristófanes escreveu muitas comédias em que criticava com um humor ácido e sagaz as contradições e mudanças políticas de seu tempo. Algumas de suas principais peças são As Nuvens, As Rãs, Pluto e Lisístrata.
Já as peças da Comédia Nova não apresentavam mais grandes mitos ou sátiras políticas, mas sim o cotidiano de pessoas comuns e sem nenhuma “elevação moral” em uma trama de mal entendidos que se resolviam ao fim da encenação. O palco já não era mais ocupado por um grande coro, mas sim por servos espertos, fanfarrões, fofoqueiras, bêbados, jovens apaixonados, maridos enganados e velhos ranzinzas, tipos cômicos conhecidos e consagrados por tantas outras épocas do teatro como as comédias latinas, a commedia dell’arte e as comédias de Moliére. Seu principal representante foi Menandro (342–291 a.C.), de quem restaram apenas 11 peças, dentre as quais O Escudo, O Misantropo e Os Árbitros.
Referências de leitura:
História mundial do teatro, Margot Berthold;
Mestres do teatro I, John Gassner;
Teatro Grego: tragédia e comédia, Junito S. Brandão;
Aulas, Anatol Rosenfeld;
Poética, Aristóteles.